quarta-feira, outubro 29, 2008

Manifesto Sururu (etnografado)

Lagoa Mundaú-Massagueira (Foto Léo Villanova)


Por Edson Bezerra (músico, poeta, pesquisador, professor universitário -alagoano)



Para Tia Marcelina[1], Tia Creusa, Maria Lúcia[2], Dirceu Lindoso
e Mestre Sávio de Almeida[3]


O manifesto sururu quer muito pouco. Quem sabe um pouco mais do que exercitar um certo olhar: um olhar atento por sobre as coisas alagoanas. O manifesto sururu não quer apostar e nem pousar em outras imagens. O que ele procura é exercitar olhos e sentidos por sobre (e dentre) antigas e permanentes imagens das coisas alagoanas: olhar primeiramente os canais que interligam as lagoas e os rios.
Os canais sempre foram as nossas pontes[4] e disto já o sabia Octávio Brandão[5].
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[1] Tia Marcelina, a ex-escrava de origem africana e matriarca do Candomblé em Alagoas, foi a mãe de santo morta durante o movimento que entraria para a história como O Quebra. As reminiscências dos relatos registram que mesmo sabendo antecipadamente da quebra dos terreiros, quando a turba chegou ao seu barracão, ao invés de correr, ela se adentra no espaço sagrado o Pegi e que, ao ser espancada a chutes de coturno por um soldado de polícia, ao tempo em que gritava por seu orixá ela dizia, bate, bate vocês matam o corpo, mas não a sabedoria.
Ao oferecermos a escrita do manifesto a sua homenagem, registramos uma dívida histórica no que acreditamos ser ela a figura histórica mais importante da resistência das culturas populares ao colonialismo e desaculturamento das elites alagoanas para com as particularidades locais. .
[2] Através dos nomes de Tia Creusa e Maria Lúcia, registramos o nosso pertencimento às origens afro-alagoanas.
[3] No que se refere a Dirceu Lindoso e Sávio de Almeida, trata-se de prestarmos aqui, uma justa homenagem a dois historiadores profundamente comprometidos com a escrita de uma história construída a partir das camadas oprimidas das Alagoas.
[4] Quando ainda não existiam ou ainda eram precárias as estradas, eram pelos canais que navegavam os barcos trazendo os moradores das cidades de Pilar, Marechal Deodoro situadas no entorno da lagoa Manguaba.
[5] Octávio Brandão foi o primeiro intelectual alagoano a romper com uma historiografia alagoana construída a partir de um olhar das elites. Ele tinha apenas 19 anos quando escreveu Canais e Lagoas, um dos textos fundamentais na inspiração deste manifesto. Octávio Brandão percorreria – a cavalo, de barco e a pé - os arredores da lagoa Mundaú, um roteiro de aproximadamente de cinco mil quilômetros na pesquisa da fauna, flora, acidentes geográficos e culturas populares nos entornos lacustres.
Forçado a se exilar de Alagoas em virtude de sua militância comunista, dizem que para não perder o contato com Alagoas, carregaria seixos nos bolsos para se lembrar de suas origens.



O manifesto sururu também fala da fome. Não da fome comum, mas da fome de devorar as Alagoas.
Contra as derrapagens de uma modernidade vazia[6], uma outra assinalada de coisas alagoanas.
Novas rotas. Rotas alagoanas: de canais e lagoas, sobretudo.
O manifesto sururu não esta sozinho. O sururu, ele mesmo é o alimento e a caloria de milhares de vidas. O sururu é vida[7].
O manifesto sururu está atento para os batuques noturnos dos terreiros periféricos[8] e fora de rota e também dos milhares de capoeiras espalhados[9].
O manifesto sururu se alegra com a folia dos meninos de rua, com os guerreiros e com as tradições alimentadas pelos povos periféricos.
Manifesto sururu: mistura e associação de moluscos, peixes, águas, negros, cafusos, morenos e de todas as mestiçagens possíveis das gentes alagoanas. Manifesto sururu: do vale do Mundaú[10] para onde houver lagoas.
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[6] Modernidade Vazia. Todos nós estamos inseridos nos movimentos da modernidade. A mesma que modernidade derruba os edifícios e devassa as tradições, também inventa e reinventa modas e estabelece a emergência de novas relações sociais. O que estamos denominando de modernidade vazia é o testemunho da implantação de uma modernidade esvaziada das coisas alagoanas. É o que se verifica, quando observamos os edifícios com nomes estrangeiros ou ainda a produção de artefatos culturais esvaziados de um imaginário alagoano.
É neste contexto que uma das idéias do Manifesto Sururu é que diante do inevitável processo da modernidade alagoana, exista a possibilidade de uma abertura para as representações de um imaginário a partir dos patrimônios históricos, dos rastros das culturas populares e das geografias culturais alagoanas.
[7] Diante das péssimas condições de vida das camadas pobres habitantes dos bairros lacustres, o sururu, devido a seu forte índice calórico, durante séculos vem alimentando as camadas populares, e dos gentios até o presente, ele se encontra no centro da sobrevivência das camadas mestiças dos entornos lacustres.
[8] Existem cerca de centenas terreiros de cultos afros espalhados pelos bairros pobres e periféricos ao redor da grande Maceió e todos, invisibilizados a partir de um olhar situado nos espaços centrais dos bairros de Ponta Verde, Jatiúca, Pajuçara, etc.
[9] Também situados nos bairros periféricos, a existência de aproximadamente cerca de cinco mil capoeiristas espalhados.
[10] O Vale do Mundão foi aonde se desenvolveu o território livre da República de Palmares.



Suas heranças são imagens, suas comidas e seus pais ancestrais. Assim: Calabar é nosso e, sobretudo Zumbi dos Palmares: migrantes deslocados da colônia central[11].
Penso em imagens alagoanas: o olhar a cidade de nossos mirantes. Os mirantes são os nossos planetários[12]. Dos mirantes se avista a lagoa, o céu e o mar.
Dos mirantes: ali poderíamos comer além de tapioca e beiju, outras coisas das tribos ancestrais.
Penso em imagens alagoanas. Penso que uma delas é a Mestra Ilda do coco tomando (no mínimo) caldinho de Sururu na beira da Mundaú[13].
Penso em uma outra: a do Major Bonifácio melado de lama e dançando Carnaval na rota Bebedouro - Martírios. Ele, o major, bem que poderia ter também dançado capoeira[14].
Uma outra seria pensar a Tia Marcelina como se ela fosse Nossa Senhora dos Prazeres[15].
No fundo somos gente-sururu e por isto trazemos nos olhos as imagens de todas as águas.
Das águas do mar e do somatório das dezenas de lagoas, rios e olhos d’água espalhados nas periferias da cidade.
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[11] Migrantes deslocados da colônia central. Os deslocados nesse contexto, se refere ao lugar que tanto Calabar como Zumbi dos Palmares ocupam nas representações dominantes das elites alagoanas. Só recentemente e após ter sido reconhecido nacionalmente enquanto um herói nacional, é que Zumbi começou a ser visibilizado e adotado nos discursos e representações do imaginário alagoano. Todavia, nem Zumbi nem Calabar ainda não têm, ao contrário dos Marechais alagoanos – Floriano Peixoto, Marechal Deodoro e Pedro de Góis Monteiro – estátua ou monumento erguido em suas homenagens.
[12] Alagoas tem um privilegio de possuir uma série de mirantes geograficamente situados: o mirante da Chã de Bebedouro, o da igreja Santa Teresinha, o da Fundação Pierre Chalita, o mirante por detrás do colégio Guido, o da Ladeira da Catedral e o mirante do Jacintinho. Dos três primeiros pode-se avistar o acinzentado das lagoas e a azulação das águas marinhas.
Todavia, até hoje eles têm sido tratados como meros acidentes geográficos desvalorizados, e não existe até o presente, nenhum projeto com a finalidade de situá-los enquanto um espaço de visitação ou para fins de um turismo sustentável. Os nossos mirantes, todos eles representam uma das características geográficas mais significativas de Maceió.
[13] Mestra Ilda do Coco. Mestra das culturas populares alagoanas e beirando os oitenta anos. Além de coco, Mestra Ilda também dança baiana.
[14] Filho das elites alagoanas (ele também seria prefeito de Maceió) o Major Bonifácio é um exemplo de mestiçagem. Em seu tempo, ele incentivou as culturas populares, dançava coco, fazia o passo e é considerado até hoje um ícone da animação cultural alagoana.
[15] Nossa Senhora dos Prazeres, a padroeira da cidade de Maceió.

Otávio Brandão: Mundaú: rio dos negros. São Francisco: rio dos brancos. Que vivam as lagoas todas: as vivas e as mortas. Somos filhos do barro, nascemos entre os batuques dos negros e da mistura da lama.
Por isso: que estória é esta de Terra dos Marechais[16]?
Somos ainda a derradeira sobrevivência (e isto é fantástico) do extermínio do povo Caeté. Em nossa veia alem do povo Caeté, pulsa sangue negro. Os brancos nos trouxeram a mistura e (também) a morte.
De todo modo, mestiços de índios, negros e brancos, estamos vivos.
Cúmplices da modernidade temos o barro e a lama debaixo dos edifícios e dos asfaltos das ruas.
Somos filhos de uma cidade restinga[17].
Os nossos edifícios (assim como a nossa modernidade) foram construídos sobre os terreiros dos negros e das moradas dos pobres. A nossa modernidade foi construída sobre os aterros dos manguezais e do massapé e é por isso que as vezes ainda sentimos cócegas nos pés: são eles, os caranguejos e as lamas[18].
Sobre os aterros, se instalaram os movimentos dos negros, seus batuques e danças. Guardamos então muitas saudades.
Por uma nova cartografia: redesenhar roteiros visíveis, remarcar datas e reescrever novas geografias[19].

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[16] “Que estória é esta de Terra dos Marechais?”
Terra dos Marechais. Dentro da proposta do Manifesto Sururu – a construção de uma identidade a partir das culturas populares – o enunciado de Alagoas, Terra dos Marechais é um enunciado das elites alagoanas e enquanto tal, elitizante e elitizado. Afinal o que os nossos marechais têm a ver com as culturas populares?
[17] Restinga é um tipo de vegetação
[18] Em tempos primitivos a lagoa Mundau avançava até o centro da cidade. Há registros de quando da reforma da Igreja de São Benedito em décadas passadas, foram encontradas no subsolo da igreja, cascas de sururu.
[19] “Por uma nova cartografia: redesenhar roteiros visíveis, remarcar datas e reescrever novas geografias.”

Manifesto sururu: Simulações sem simulacros.
Que por dentre as cenas das antenas parabólicas, outras cenas de imagens periféricas.
Por uma reinvenção da cidade e celebração pública da memória dos nossos proscritos. E por falar nisso:
Viva Calabar!!!!
Além de toda ancestralidade, o erotismo do coco[20] e dos fragmentos de nossas raízes periféricas.
Os nossos terreiros são nossas academias: semente de ritos e lugar de celebração e festas. Viva todas as alegrias. Viva o Terreiro de Mestre Felix[21] e de todos os mestres.
Saudades daqueles tempos. Antes do “quebra de 1912” o batuque era bem maior[22].
Temos muitas dívidas: para com a morte de Tia Marcelina, por exemplo.
E temos muitas outras. Uma delas é a seguinte: a Praça 13 de Maio[23] deveria ficar na Praça dos Martírios e a estátua do negro Zumbi no lugar do Marechal.
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O manifesto está aqui apontando para a necessidade de uma releitura de uma representação dominante voltada para a comemoração das grandes datas das comemorações oficiais – a Proclamação da República, a emancipação política de Alagoas, etc. – e da celebração dos vultos históricos já desde sempre consagrados.
É com este espírito que o Manifesto Sururu mantém um olhar voltado para os mestres das culturas popularese, para vultos históricos marginalizados, e para o esquecimento geográfico da região das lagoas.
[20] O nascimento do coco se deu no espaço de vivência da Serra da Barriga no entranhado da mestiçagem sob a dominância da cultura Banto.
[21] Mestre Félix foi um dos mestres perseguidos durante o movimento da quebra dos terreiros em Maceió em 1912.
[22] Denominou-se de Quebra, ao movimento de destruição dos terreiros da cidade de Maceió e seus arredores ocorridos em 1912 durante o movimento de revolta popular contra a oligarquia de Euclides Malta, quando, no espaço de alguns dias, de trinta a cinqüenta terreiros de Candomblé foram quebrados e os pais, filhos e mães de santo foram espancados e humilhados publicamente. Foi em decorrência das ligações existentes entre os terreiros de Candomblé e Euclides Malta, o qual, durante três mandatos consecutivos – dois de mando próprio e um terceiro através de um primo – ocuparia o poder, que os praticantes do candomblé tiveram os seus terreiros quebrados. A partir desta data se tornou uma prática comum durante décadas a perseguição e a proibição da prática dos cultos afros. Para resistirem, os seus praticantes passaram a realizar seus rituais sem a batida dos atabaques. A partir de então os rituais passaram a ser realizados quase as escondidas e o som dos atabaques foram substituídos por palmas por dentre os burburinho dos cantos. Foi esta prática que daria origem a modalidade do que se denominaria de “Xangô rezado baixo”, uma prática única em todo o Brasil. Por ai se entende um pouco os meandros da especificidade da cultura da violência em Alagoas.
Acreditamos - e as evidencias sinalizam nesse sentido – de que a atual não existência de um carnaval de rua com uma marcante presença popular, se deve ao trauma do fenômeno da quebra dos terreiros. Antes de 1912, era comum na cidade de Maceió a presença dos cortejos dos Maracatus durante o carnaval e festas religiosas. Todavia com a diáspora dos cultos afros, o Maracatu aos poucos foi desaparecendo e o carnaval foi se tornando uma festa esvaziada das culturas populares.

[23] A Praça 13 de Maio, situada no bairro do Poço, foi construída em homenagem a data comemorativa da libertação dos escravos. Lá se encontra a estátua erguida em homenagem à Mãe Preta, a figura maternal da escrava mãe de leite.

Faríamos assim muitas festas e celebraríamos com os batuques o sincretismo de nossas mestiçagens. Quem sabe então ele, Zumbi, não rezaria uma missa pra depois dançar Xangô?
Nós repudiamos o etnocídio e proclamamos todos a uma grande alegria.
Viva a alegria de todas as festas. Quem antecedeu os Marechais foi Zumbi e antes dele, Calabar[24]. Viva a subversão e a liberdade.
Entre os nossos pobres, os pobres específicos, aqueles que sobreviveram a maleita e a fome estiveram desde sempre os cantadores de coco, de toadas, de forro, das rodas de samba, os repentistas, os criadores do martelo alagoano, os capoeiras, os macumbeiros e mandingueiros. Em suma: as nossas almas inspiradoras.
Das lagoas. Também elas invadiram e invadem o mundo das imagens: de Guilherme Roggato a Celso Brandão[25].
As palavras-mundo de Jorge de Lima e Ledo Ivo[26] são roteiros cinematográficos de um imaginário alagoano.
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[24] Na cronologia dos fatos, tanto Calabar como Zumbi vieram antes dos Marechais. E por que apenas os Marechais têm sido historicamente representados?
[25] Guilherme Roggato. Devemos a ele o primeiro filme rodado em Alagoas, “Casamento é Negócio?” rodado em 1933. O filme, repleto de imagens alagoanas da década de 30, ainda teria em seu elenco o lendário Major Bonifácio da Silveira e o ator Moacir Miranda dono do antigo cinema Lux. Em uma de suas cenas mais significativas, o Pontal da Barra e belas imagens da lagoa Mundaú.
Celso Brandão é apontado como o mais representativo fotógrafo alagoano. Descendente de uma família profundamente ligada a preservação das culturas populares – Theo Brandão, José Aloísio Vilela, etc., - tem a trajetória de sua obra marcada pelo incansável registro das culturas e tipos populares, religiosidades, etc.
Além de fotógrafo Celso Brandão é também cineasta e no geral, os seus curtas-metragens (Ponto das Ervas, Memória da Vida e do Trabalho, etc.) são registros das culturas populares. É ainda de sua autoria o “Cata Sururu”, um registro etnográfico sobre a catação de sururu na lagoa Mundaú.
[26] Tanto Jorge de Lima como Ledo Ivo são escritores envolvidos com uma temática inserida em um imaginário alagoano. Já na década de trinta, em seu romance O Anjo, Jorge de Lima escreveria:

Sururus existem em quase todas as lagoas do Brasil. Porém os desta lagoa [Mundaú de Maceió], devido a circunstâncias especiais explicadas pelos naturalistas, como mistura de água do mar com águas dos rios que deságuam na lagoa, e outras causas, tornam-se como que degenerados, pequenos, gordinhos, gostossíssimos.


Do somatório de todas as águas: as águas do mar que invadiram a todos.
Dos olhos d’água e do cheiro de maresia contra o cheiro agridoce das canas. Maresia alagoana: ela contaminou a todos: dos pisantes das terras alagoanas - dos índios e negros, brancos e holandeses e até mesmo aos piratas franceses.
...e sobretudo do cheiro do sururu tirado fresquinho da lama: alimento dos negros e pobres. Imagem segura e maternidade de nossas imagens mães.
Assim, Mestra Ilda também é Zumbi e Mestre Zumba[27] também.
Além de sentimentais, somos anfíbios, quer se queira quer não.
Quem ainda não provou do sururu, tomou banho de lagoa é aleijado dos olhos e cego no corpo[28].
Viva Deodato, outro negro artista[29].
Sururu: ao redor dele, os bairros e os povoados se amontoaram e se enredaram: Ponta Grossa, Levada, Pontal, Bebedouro e Rio Novo[30]. Todos filhos das águas.
O sururu então, mais dos que os homens, inventou e recriou as nossas geografias: as cartografias de nossa primitividade. Ali naqueles espaços embrenhados dançava-se Macumba, fumava-se liamba, cantava-se o coco e se recriava um mundo: o mundo alagoano[31]. Como isto foi possível?
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[27] Mestre Zumba, nascido na cidade lacustre de Santa Luzia do Norte, na beira da lagoa Mundaú era filho de santo e parente de Tia Marcelina. Zumba foi um artista plástico que durantes décadas era visto vendendo suas telas pelo centro da cidade de Maceió. Em suas imagens, uma alagoanidade composta por negros e uma Alagoas primitiva com imagens enraizantes de coqueirais lagoas e praias.
[28] Trata-se aqui de acentuarmos o forte valor nutritivo do Sururu. Popularmente chama-se pegar na fraqueza à possível sensação de tontura que as pessoas sentem ao tomarem pela primeira vez o caldo de sururu.
[29] Mestre Deodato, alagoano nascido na região da levada perto da lagoa Mundau, e atualmente com mais de 80 anos, além grande contador de estórias, é apontado como o melhor artesão do Brasil.
[30] Os bairros de Ponta Grossa, Levada, Pontal, Bebedouro e Rio Novo são bairros lacustres. No entorno deles se concentram o maior número de mestres de Alagoas.
[31] Trata-se da evocação de uma ambientação de efervescência de rituais e de festas enquanto movimentos necessários para a consolidação de elementos culturais tipicamente alagoanos. Assim, Macumba, liamba (maconha) e coco, são evocados enquanto elementos dionisíacos e fundamentais na ambientação de uma matriz cultural de origem negra.

Na busca do sururu, os homens pobres desenharam ruas.
Sururu: espaços coletivos, maternidade e memória. Nascedouro e rotas de outros espaços geográficos. Espaços de uma memória possível.
Viva Jorge de Lima e Celso Brandão que filmou o “Pesca Sururu[32]”.
Levada. Alguém lembra que ali havia um porto?
Alagoas não foi feita (somente) pra turista ver.
Pra turista ver e olhar o mar[33].
No além-mar, pensar não outras terras. No além-mar pensar nossos interiores. Lagoas interiorizadas[34]. Pra turista ver também. E que ele venha, e já que comemos o Bispo Sardinha, o comeremos também, mas antes disto ensinar ele a tomar banho de lagoa e comer caranguejo Uça[35] com as mãos. Aliás, com todo estrangeiro deveria ser assim[36].
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[32] Trata-se de um curta metragem de Celso Brandão sobre a retirada do Sururu do funda da lagoa.
[33] Aqui, a referência é uma crítica à prática predatória do turismo de massa enquanto um produto típico de uma modernidade vazia, ao tempo em que aponta (como veremos em seguida) para a necessidade de um olhar descolonizador voltado para os nossos interiores. De resto, interiores com paisagens distintas das imagens litorâneas com imagens saturadas de Sol e Mar. Um olhar descolonizado e voltado para as coisas alagoanas deverá ser descortinado através de uma geografia pontuada por pequenas lagoas e rios, lugares de ricos acidentes geográficos e ricas e exuberantes em culturas populares.
[34] Em Alagoas ainda existe algo em torno de sessenta lagoas espalhadas pelos interiores. Segundo o levantamento e classificação do professor Moisés Calu, elas estariam distribuídas do seguinte modo:
Lagoas Litorâneas: Lagoa Mundaú, Lagoa Manguaga, Lagoa do Roteiro, Lagoa de Jequiá, Lagoa Escura, Lagoa do Tabuleiro, Lagoa de Guaxuma, Lagoa Vermelha e outras menores (Lagoa do timbó,Lagoa dos Patos Lagoa do Pau, Lagoa das Pacas, Lagoa Comprida,Lagoa Doce, Lagoa do Mangue, Lagoa do Taboado, Lagoa Azeda,Lagoa de Jacarecica,Lagoa da Anta). Lagoas da Margem do São Francisco: Lagoa do Tororó, Lagoa de Santiago, Lagoa da Jacobina, Lagoa da Cabeceira, Lagoa da Várzes, Lagoa do Sanção, Lagoa da Maarcação, Lagoa do Munguengue, Lagoa de Baixo. As localizadas entre Pão de Açúcar e São Brás, a partir de São Brás em direção a Penedo: Lagoa comprida, Lagoa do Meio, Lagoa Tatuia, Lagoa da Várzea, Lagoa do Campo, Lagoa do Sampaio, Lagoa Enxada, Lagoa Mocambo, Lagoa da Porta, Lagoa do Cangote, Lagoa do Caldeirão, Lagoa do Sobrado, Lagoa Grande, Lagoa do Engenho, Lagoa Marizeiro, Lagoa Salgada. As localizadas abaixo do município de Penedo em direção ao estuário do São Francisco: Lagoa do Botafogo, Lagoa do Mangue, Lagoa da Várzea Grande, Lagoa Caiada. Lagoas dos interiores: Lagoa da Canoa, Lagoa do Rancho, Lagoa do Pai Gonçalo, Lagoa de Santa Luzia, Lagoa do Curral, Lagoa do Gado Bravo, Lagoa do Pé leve, Lagoa do Lunga, Lagoa dos Porcos, Lagoa do Canto, Lagoa Nova. As lagoas recentemente registradas com exclusividade pelo professor e pesquisador professor Moisés Calu: Lagoa do Caldeirão, Lagoa do Capim, Lagoa Comprida, Lagoa Grande, Lagoa da Pedra, Lagoa do Coxo (Destacamos que o levantamento acima foram realizadas pelo professor Moisés Calu da Universidade Estadual de Alagoas).
Ao redor delas, um verdadeiro relicário da culinária alagoana e espaços de permanências das culturas populares alagoanas.
[35] Caranguejo Uca. Trata-se de um crustáceo existente nas regiões lacustres mangues, rios e mangues. De forte valor nutritivo, ele é um dos frutos do mar que compõem a culinária alagoana.
[36] Comer o turista. Ou seja: praticar a antropofagia a exemplo do que fizeram os Caetés com o português branco e colonizador. O que está em jogo com este enunciado é não apenas apontar para elementos atávicos e primitivos (tomar banho de lagoa e comer caranguejo Uca com as mãos) na defesa de uma cultura tipicamente alagoana, mas, sobretudo de apontar e firmar pontos de resistência afim de que possamos preservar uma espécie de matriz alagoana no movimento particular de nossas mestiçagens.

Turismo primitivo: a Bica da Pedra, o banho no Cardoso, o Catolé[37]. Lugares de luz com águas frescas e claras.
O bar das Ostras[38].
O porto de Bebedouro e de Santa Luzia do Norte, alguém lembra?

"Sururulândia[39]": Esta é nossa riqueza e desde sempre memória.
Mas aconteceu que Maceió fugiu da mundaú. Pensou que a lama e os caranguejos e os homens-caranguejos iam engolir ela[40]!!!!
A nossa Aristocracia com medo e nojo fugiu do barro - e fugiriam também da zoadas dos batuques, do coco e das macumbas e foram morar lá na banda das praias: Pajuçara, Ponta Verde e Jatiúca. E naquelas praias há pouco desertas, no lugar dos casebres e casas de paus a pique, foram montados os edifícios e as luminárias elegantes da cidade.
E as águas do mar são diferentes das águas da lagoa.
A gente sururu então ficou sozinha.
Formou-se deste então, duas gentes: a gente sururu e o povo rico da cana.
De um certo modo, ao gosto do sururu, se somou o cheiro da cana. Alagoas então é de todo um pouco de cada pedaço.
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[37] Quando o banho de mar ainda não havia se tornado uma prática glamurosa das elites, a Bica da Pedra, o banho no Cardoso e o Catolé eram espaços lacustres e fluviais conhecidos enquanto espaços de vivências, recreações e lazer.
[38]O Bar das Ostras foi um bar muito conhecido e freqüentado em Maceió durante as décadas de 40, 50 e 60 do século passado. Ele se tornou famoso em virtude de sua culinária dos frutos oriundos das geografias culturais alagoanas.
[39] Era essa uma das referências à Alagoas quando nas primeiras décadas do século XX o sururu era amplamente consumido e compartilhado no imaginário alagoano.
[40] Trata-se de assinalar aqui as mudanças ocorridas no espaço urbano em Maceió em decorrência do processo de desenvolvimento da modernidade, quando em conseqüência do avanço de novos espaços urbanos, as elites alagoanas da capital passaram a ocupar a região das praias. De passagem lembramos que a valorização das praias enquanto um espaço saudável e de lazer, é uma construção tardia da modernidade. No começo do século as praias eram lugares desertos e dentre outras coisas, utilizadas para depósito de lixo e dejetos.
Assinala-se também aqui ser um dos traços da modernidade alagoana - e fugiriam também da zoadas dos batuques, do coco e das macumbas – a instalação de uma cultura urbana e de elite apartada das geografias e dos movimentos das culturas populares.

Mas, ao contrario da maternidade dos mariscos, os capins da cana se tornaram baionetas retocadas de sangue.
Na verdade a cana nunca foi doce. Zumbi e os negros já desde sempre sabiam[41].
O sururu também não é doce. Mas entre o doce e o salgado, e somado à mestiçagens das cantigas e do somatório das estórias todas, ele foi dando alma e corpo à gentes alagoanas[42].
Por isto, é uma pena que o Farol não derrame sua luz na mundaú.
O Farol nunca iluminou as lagoas. Nas lagoas não navegam os navios. Mas, afinal o que trazem os navios? Nas lagoas apenas navegam os peixes, os homens e os mariscos adormecidos e preguiçosos: o bagre, o mandim, o siri, o caranguejo e o sururu enfiado na lama[43].



Mas afinal, se toda festa tem um tempo, qual o tempo sururu?
Sururu, cultura oral sururu. Sinestesias: pureza aberta e sem perigo.
Sinestesias: um dia uma branco tomou caldo de sururu e ficou doido.
Sururu: comida dos pobres:
Nossa miséria é a nossa riqueza[44].
Que ressuscitemos todas as histórias
E que no banquete das mestiçagens periféricas
E na festa de todos os povos ressurgentes
Morram colonizadores e colonizados[45].
E que por dentre o barro e cheiro da lama


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[41] A referência nesse contexto é a escravidão, uma relação social historicamente associada a exploração da cana-de-açucar e fundamental na solidificação de uma teia de poder associada a cultura da violência.
[42] O sururu está sendo colocado aqui enquanto uma alegoria da mestiçagem alagoana.
[43] Mais uma vez aqui, uma referência crítica à modernidade alagoana. Enquanto meio de transporte os navios foram os veículos do desenvolvimento do colonialismo e consolidação da modernidade.
Neste contexto, a referência à iluminação das lagoas, está apontando para um olhar voltado para o interior de Alagoas, para as particularidades da flora, os coqueiros sobretudo, a fauna lacustre, o bagre, o mandim, o caranguejo, etc.
[44] Frase de Tavares Bastos
[45] A morte de colonizados e colonizadores – pólos de um mesmo núcleo, a colonização – é imprescindível para o nascimento de um olhar descolonizado e voltado para um imaginário das coisas alagoanas.

E no somatório de todas as imagens, a Mundaú central,
E nela a gente sururu seja imensa
Feito um oceano sem margens[46].
No somatório de todas as águas.
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[46] Um oceano sem margens. Frase extraída de um poema do poeta Zé Paulo do município de Pão de Açúcar lá palas bandas do alto sertão, beira do São Francisco.



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